terça-feira, 17 de maio de 2016

Analisando Alice e o País das Maravilhas. Um pouco mais sobre o non-sense...

Loucura ou Desrazão?
     
        É impossível ler As Aventuras de Alice no País das Maravilhas sem que a Loucura – bem como tudo o que se relaciona a ela – chame a atenção de um leitor um pouco mais maduro. A loucura, bem como o surreal e o non-sense não só permeiam a obra, como também a movimenta.  
        Segundo a psicologia, todo tipo de pensamento que uma sociedade considera anormal é chamado de loucura. Quando um indivíduo se distancia das suas formas naturais de agir ou pensar, ele possui algum tipo de distúrbio ou alteração mental. Tudo aquilo que está fora da normatividade estabelecida é condenado pela sociedade, pois foge ao controle da razão.
        Porém, muitas vezes a verdade está mais no delírio do que no bom senso dos homens. E é possível estabelecer limites saudáveis entre loucura e sanidade, um desses limites possíveis é a desrazão. A loucura por si só não é interessante, mas a desrazão seria um estágio de insanidade que permite ao indivíduo, mergulhado em seu inconsciente, transitar entre a razão e aquilo que foge a ela como o irreal, o absurdo e o non-sense, um espaço em que as relações lógicas são outras. O enigma sobre a"semelhança entre um corvo e uma escrivaninha?” (CARROLL, 2010, p. 81) ilustra muito bem o non-sense que movimenta a obra.  No país das Maravilhas o direito ao pensamento, à razão, é suspenso: um trecho da conversa de Alice com a Duqueza mostra isso: “tenho o direito de pensar” diz Alice. “tanto direito quanto os porcos têm de voar” diz a duquesa. (CARROLL, 2013, p. 73). 
        Levando em consideração o conceito de desrazão é possível perceber que quando Alice entra no País das Maravilhas está mergulhada em todo o potencial de seu inconsciente. Ao ser atacada pelas cartas do baralho, a menina desperta novamente para a realidade. Contudo, a loucura está presente em várias partes do livro e é sugerida explicitamente com frequência, um exemplo disso pode ser visto no encontro de Alice com o Gato Cheshire:
Ilustração de John Tenniel
“‘Naquela direção’, explicou o Gato, acenando com a pata direita, ‘vive um Chapeleiro; e naquela direção’ acenando com a outra pata, ‘vive uma Lebre de Março. Visite qual deles quiser: os dois são loucos.’
‘Mas não quero me meter com gente louca’, Alice observou.
‘Oh! É inevitável’, disse o Gato; ‘somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca’.
‘Como sabe que sou louca?’ perguntou Alice.
‘Só pode ser’, respondeu o Gato, ‘ou não teria vindo parar aqui’.” (CARROLL, 2010, p. 77).
        Juliana M. N. Araújo diz que “o indivíduo só pode ser considerado louco em relação a algo ou alguém, pois é muito difícil definir a loucura por si só” (ARAÚJO, 2014). A sociedade do país das maravilhas não reconhece a loucura como uma patologia, pois todos são loucos de alguma forma, logo a loucura não é real. Nesse caso, Alice seria tão normal quanto os demais seres do mundo subterrâneo, mas louca diante da sociedade vitoriana na qual que vivia. Há aqui uma relativização da loucura. 


A Natureza Insana da Criança

        O psicanalista Adam Phillips defende que a fase da infância seja um período de “loucura original”, a sanidade só é alcançada a partir do desenvolvimento. “Nascemos literalmente insanos”, alega ele.
        A criança tem uma natureza apaixonada, a menina Alice é autêntica e autoconfiante, o que lhe permite responder a uma variedade de situações com criatividade, autenticidade e espontaneidade . A loucura é uma resposta autêntica criativa, que busca a inovação, sem o medo das incertezas futuras. (ARAÚJO, 2014). Vejamos um exemplo disso: “‘Quem se importa com vocês?’, disse Alice (a essa altura já tinha chegado no seu tamanho normal). ‘Não passam de um baralho!’.” (CARROLL, 2010, p. 145). Segundo Bettelheim
"Uma criança defrontada com problemas e situações cotidianas que lhe causam perplexidade é estimulada, no seu aprendizado a compreender o ‘como’ e o ‘por que’ de tais situações, e a buscar soluções. Mas como sua racionalidade até então exerce pouco controle sobre o inconsciente, a imaginação escapa, junto com ele, sob a pressão de suas emoções e conflitos não resolvidos. A habilidade da criança em raciocinar, que apenas surgiu, logo é dominada pelas ansiedades, esperanças, medos, desejos, amores e ódios – que se entrelaçam com qualquer coisa que ela comece a pensar" (BETTELHEIM, 1980, p. 78)
        Sob a óptica da psicologia, Alice, aos 11 anos, ainda é uma criança e age como tal, porém seu corpo começa a sofrer algumas transformações com a chegada da puberdade. No mundo subterrâneo, ela sofre diversas alterações de tamanho, ela muda de tamanho 12 vezes no livro (e este possui 12 capítulos), ora minúscula, ora gigantesca, até por fim chegar novamente ao seu tamanho natural – que ela mesma quase já não se recordava qual seria. Tais mudanças faziam com que Alice se questionasse sobre quem realmente era. Em sua conversa com a Lagarta esta lhe pergunta várias vezes "Quem é você?" e ela não sabe responder:
Trecho da produção da Disney no qual ela conversa com a lagarta
“‘Quem é você?’ perguntou a Lagarta. Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio encabulada: ‘Eu... eu mal sei, Sir, neste exato momento... pelo menos eu sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então.’” (CARROLL, 2010, p. 55).
     Essas mudanças corporais exageradas podem ser entendidas como uma metáfora desse ciclo que se inicia em sua vida e como o seu inconsciente interpreta e sente essa situação. Assim como ela, todo o ambiente e todas as personagens ficam distorcidos e surreais, quase psicodélicos, como é o caso do Grifo e da Tartaruga Falsa. Esta segunda personagem já fora uma tartaruga verdadeira, porém, por um motivo desconhecido, tornou-se falsa e vive agora triste. É praticamente um espelho das sensações e sentimentos que Alice vive no momento.


Queda na Toca do Coelho: Submersão no Mundo dos Sonhos

        Ao cair no buraco da toca do coelho, supõe-se que Alice esteja dormindo, pois está em um mundo desorganizado e sem apoios, no qual a sensação de queda interminável garante o absurdo do momento. Entrar no mundo subterrâneo significa acessar o mais que há de mais profundo no seu inconsciente e a queda profunda sugere o quanto esses conteúdos são difíceis de serem alcançados. 
Trecho da produção realizada pela Disney no qual ela está
numa queda livre após cair no buraco do coelho
        O sonho é, portanto, uma parte desconhecida do sujeito, “é no inconsciente que mergulhamos todas as noites” – ou toda vez que dormimos profundamente, explica o psicanalista Jung. Sendo assim, o país das maravilhas seria o mundo dos sonhos de Alice, o mundo do seu inconsciente.
   O mundo subterrâneo não é reconhecido por Alice, mas também não lhe causa tanto estranhamento. Após o momento da novidade e da peculiaridade de cada fato, a menina responde a eles com certa naturalidade e muita desenvoltura. Para Araújo
“A loucura surge como um saber, difícil e estranho, mas que é inacessível ao homem são. A loucura abre-se a um mundo de significações, que faz surgir figuras com sentidos que só se deixa apreender sob o insano. É uma sabedoria simbólica que provem de uma sobrecarga de sentidos e de significações que só o sonho e o insensato podem alcançar.” (ARAÚJO, 2014).
        Segundo Araújo “o caminho trilhado por Alice pode, então, ser comparado a um processo de crescimento psicológico” (ARAÚJO, 2014). O crescimento psicológico de Alice se dá a partir do desenvolvimento das relações com cada personagem e de seu entendimento individual. Para Jung, cada personagem representa uma sombra de Alice em diversos momentos de sua vida, e – sendo o inconsciente atemporal – eles podem aparecer de maneira concomitante durante o mesmo sonho. 
O Chapeleiro Maluco - Ilustração
de John Tenniel
“Alice estivera olhando por cima do ombro dela com certa curiosidade. ‘Que relógio
engraçado!’ observou. ‘Marca o dia do mês, e não marca hora!’
‘Por que deveria?’ resmungou o Chapeleiro. ‘Por acaso o seu relógio marca o ano?’
‘Claro que não!’, Alice respondeu mais que depressa, ‘mas é porque continua sendo o mesmo ano por muito tempo seguido.’
‘O que é exatamente o caso do meu’, disse o Chapeleiro.” (CARROLL, 2010, p. 83.)
       O país das maravilhas é um mundo desconhecido e enigmático, uma zona fantástica habitada por criaturas peculiares e antropomórficas. Esse mundo apresenta uma lógica do absurdo típica dos sonhos que faz com que a obra seja incorporada no gênero do non-sense. Durante seu julgamento, no último capítulo, Alice vai crescendo, e ao mesmo tempo volta à razão, acordando, de volta à realidade.


A Busca Inconsciente Pelo Autoconhecimento
     
        Como vimos Alice se questiona sobre quem ela é e durante a sua queda pela toca do Coelho, divaga bastante, há um fluxo de consciência pelo qual ela passa, em busca de em si mesma, de um autoconhecimento.
       Como já foi dito, o crescimento psicológico de Alice pode ser visto através das relações da menina com cada personagem, mas é também percebido a cada ação dela mediante as diferentes situações e a cada escolha que ela faz para enfrentar as diferentes adversidades em seu caminho. Logo no início da obra, a garotinha se deixa levar mais pelos acontecimentos, contudo, ao final da história, decide tomar ela mesma as rédeas das situações, impondo suas vontades e se afirmando como uma pessoa importante, e não simplesmente como alguém em quem a Rainha de Copas possa mandar e desmandar como bem entender. 
        Ao se consolidar como mandante da situação, Alice evidencia o seu crescimento psicológico e inicia sua jornada rumo ao autoconhecimento, mesmo sem se dar conta disso. Tudo acontece de forma muito subjetiva, mas esse movimento natural da mente humana tem como objetivo a busca pelo desenvolvimento pessoal e nos leva a pensar sobre o que é e como se dá a descoberta de si mesmo. Uma coisa depende da outra. Num trecho do livro de Carroll Alice afirma:
“‘Eu poderia lhes contar minhas aventuras...começando por essa manhã’, disse Alice um pouco tímida; ‘mas não adianta voltar a ontem, porque eu era uma pessoa diferente’.” (CARROLL, 2010, p. 121).


Obra de Arte e de Psicologia

        Loucura e sanidade são extensões uma da outra. Para Phillips 
“A loucura, em sua melhor forma, é uma jornada rumo à verdadeira sanidade, rumo a autenticidade de nossa verdadeira natureza, através da loucura estamos em contato com o que há de melhor em nós. A cultura corrompe nossa verdadeira sanidade.” (PHILLIPS, 2008, p. 25).
        Com personagens loucos ou não, num mundo aparentemente sem sentido, Carrol criou uma obra que se tornou um clássico da literatura, não só juvenil – por oferecer um mundo fantástico com o qual as crianças e adolescentes se identificam – mas também adulto – por permitir diversas interpretações dessa obra - que, como diz Ederli Fortunato “parte do mundo real para um universo de regras próprias, onde o absurdo, o mágico e o ilimitado coexistem” (FORTUNATO, 2015).
        A obra contribuiu para o surgimento de algumas linhas de estudo, inclusive na filosofia, tais como o existencialismo e o uso da lógica e da matemática aplicada em obras literárias. É nessa importante, densa e complexa produção que psiquiatria e arte se confundem a tal ponto que  não é possível definir onde uma se termina e a outra se inicia.



Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Juliana Monteiro do Nascimento. Alice no País das Maravilhas e o limiar entre loucura sã e sanidade patológica. Disponível em: http://ulbra-to.br/encena/2014/08/11/Alice-no-Pais-das-Maravilhas-e-o-limiar-entre-loucura-sa-e-sanidade-patologica.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Tradução. Ariene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. & Através do Espelho e o Que Alice Encontrou Por Lá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. & Através do Espelho. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2ª ed., 2013.

FORTUNATO, Ederli. A História Por Trás de Alice no País das Maravilhas. 2015 Disponível em: https://omelete.uol.com.br/filmes/artigo/a-historia-por-tras-de-alice-no-pais-das-maravilhas/

LUCENA, Eduardo. Alice no país das maravilhas: Muito além da toca de coelho. Disponível em: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/alice-pais-maravilhas-muito-alem-toca-coelho-745955.shtml.

PHILLIPS, Adam. Louco para ser normal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. Disponível em: http://www.zahar.com.br/sites/default/files/arquivos/t1061.pdf

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