O objetivo desse blog é apresentar a obra prima de Lewis Carroll: As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e realizar algumas reflexões analíticas a seu respeito, começando com a apresentação da história de seu surgimento e as primeiras edições do livro até as várias adaptações cinematográficas realizadas, seguindo uma ordem cronológica até as mais recentes.
A obra em questão é analisada com base em reflexões que levam em consideração, entre outras coisas, o contexto no qual Lewis Carroll escreveu, suas relações sociais, sua formação acadêmica e sua ligação com o racionalismo e o non-sense.
Nancy Mendes Torres Vieira
Esse blog foi escrito com a colaboração dos seguintes graduandos do curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH da Universidade de São Paulo - USP:
Daremos atenção a várias adaptações de Alice para o cinema e para a televisão, iniciando com as versões cinematográficas numa ordem cronológica desde a primeira até a que foi lançada em 2010, de Tim Burton. Na sequência veremos as animações e séries destinadas à televisão, além de filmes de caráter educativo e/ou crítico. Para ilustrar o que está sendo dito utilizaremos algumas imagens, e os próprios vídeos, sobretudo da segunda parte desta postagem.
A primeira versão de Alice no País das Maravilhas foi a de 1903, intitulada Alice in Wonderland, um curta mudo de oito minutos, retirados dos doze minutos originais. Foi considerado o filme mais longo e mais caro na época. O diretor se baseou fielmente nos desenhos originais da obra de Lewis Carrol, as ilustrações de John Tenniel. O filme realmente mostra o universo do livro, mesmo que de uma forma bem resumida. O que é interessante nas versões antigas é a criatividade do diretores para tentar reproduzir situações surreais do livro, como uma das cenas mais clássicas da história, na qual Alice (interpretada por May Clark, 18 anos) precisa entrar na pequena porta, e encontra um bolo que a faz crescer e uma bebida que a faz diminuir. O diretor Cecil Hepworth simplesmente fez várias portas de tamanhos diferentes e a cada corte no filme, Alice ficava na frente de uma dessas portas, em ordem crescente, gerando a ideia de diminuição do seu tamanho. Essa versão conta apenas com as cenas da queda de Alice no buraco do coelho, do crescimento, da casa em que ela fica presa, cenas com o Gato Cheshire, da louca festa do chá e o julgamento da Rainha de Copas. Uma curiosidade dessa versão é que foi um dos primeiros filmes do diretor, encontrado em 2008. Mas por quê encontrado? A Hepworth Studios produzia filmes muito caros e, com isso, acabou devendo muito dinheiro. Para que pudessem pagar essas dívidas, a companhia de liquidação de dívidas derreteu muitos rolos de filmes da produtora para extrair prata a partir deles. Por sorte, um filme foi encontrado, o Alice in Wonderland, e pode haver outros mais.
Virgínia Davis da primeira versão da Disney em 1923
Uma versão posterior é o Alice’s Adventures in Wonderland, de 1910, que não fugiu muito da primeira versão, dura exatamente dez minutos. Foi dirigido por Edwin S. Porter pela Edison Manufacturing Company, com Gladys Hulette como Alice. Cinco anos depois, surgiu outro Alice in Wonderland, dirigido e escrito por W. W. Young, estrelando Viola Savoy como Alice, mas nada muito fora do comum do incomum da história, apesar dos cinquenta e dois minutos de filme e personagens parecendo bonecos, com cabeças grandes idênticas aos desenhos originais. E, nesse marasmo de mesmice, veio a versão de 1923, que não tem nada de Lewis Carrol, mas obteve esse título porque uma garota visita os estúdios Disney e participa dos desenhos animados, que não são do mundo Carrol. Virginia Davis, a Alice da vez, é somente uma garota e o “país das maravilhas” são os desenhos da Disney ganhando vida ao redor dela. Essa seria, então, a primeira vez que a Disney trabalha com o título, mas de uma forma que não passa de comercial.
A primeira versão cinematográfica falada foi lançada em 1931, dirigida por Bur Pollard e estrelado por Ruth Gilbert como a personagem principal. O diferente desse filme, além das falas que enriquecem o conteúdo e dão aquele ar de confusão e loucura mais acentuado, são as maquiagens dos personagens, os quais estão mais longe de parecer bonecos. Os atores também tiveram uma dificuldade a mais: imitar o sotaque britânico, que pode parecer muito artificial - e até caricato.
Imagem do filme "Alice In Wonderland" (1931)
Em 1933, Alice ganhou um elenco de atores lendários de Hollywood, como W.C. Field, Cary Grant e Gary Cooper, mas que só são reconhecidos nos créditos iniciais do filme, pois estão dentro de fantasias. Dirigido por Norman Z. McLeod e tendo Charlotte Henry como a protagonista, o longa de uma hora e dezessete foi produzido pela Paramount Pictures, uma produtora famosa e mais influente, que as anteriores.
Imagem do filme "Alice In Wonderland" (1933)
Imagem do filme "Alice au pays des merveilles" (1949)
Em 1949, a França também quis ter sua versão da obra de Carrol, intitulada Alice au pays des merveilles, esta contava com poucos atores que, além de contracenar algumas cenas, dublavam a maioria dos personagens. Tais personagens eram bonecos de massinha animados em stop-motion, muito diferente das formas anteriores. O que vale prestar atenção também é a forma bem teatral de fazer os cenários e as cenas, com paisagens feitas de papel, madeira e outros materiais, e os franceses não tiveram vergonha de esconder essa teatralidade, o que dá um toque muito único para esse longa estrelado por Carol Marsh, no papel principal, e dirigido por Dallas Bower. O lançamento dessa versão foi prejudicado fora da Europa, por causa de disputas legais pela da história, já que a Disney estava preparando sua versão, que viria aos cinemas em 1951.
Essa versão da Disney a é mais famosa dentre as animações, além de ser um musical. Com seus vários problemas, atrasos, polêmicas e recortes, a animação bem investida feita por Lou Bunin foi debutada em 1951, obtendo um lucro muito baixo nos cinemas, mas um sucesso grande quando exibida nas televisões posteriormente. O longa animado teve várias cenas deletadas, como a cena em que Alice encontra uma Duquesa, um cozinheiro e um bebê. O cozinheiro estava jogando temperos e pimenta no ar, fazendo a Duquesa espirrar e o bebê chorar e, depois de uma conversa entre Alice e a Duquesa sobre o cozinheiro, este joga panelas e potes no bebê. Vista como uma cena de maus-tratos, ela foi retirada. Outra cena foi o aparecimento do monstro Jabberwock. O criador ficou entre deixar a aparição do monstro ou somente deixá-lo como citação de um poema pela boca da Lagarta Azul. A segunda opção prevaleceu. A personagem Rainha Branca foi retirada, não por não agradar a Walt Disney, mas porque ela ensinaria à Alice algumas lições, e ele queria que Alice aprendesse por si própria. Abaixo um trecho dessa versão da Disney:
Uma versão britânica da BBC foi lançada, por Jonathan Miller, em 1966 e uma animação americana, produzida pela United Productions of America, levou Alice para Paris em nuances surreais. Nenhuma dessas duas produções seguiram muito fielmente a história original.
Imagem do musical "Alice's Adventures In Wonderland" (1972)
Uma das adaptações cinematográficas mais famosa foi a de 1972, um musical inglês dirigido por Wlliam Sterling e estrelado por Fiona Fulleton como Alice. Recebeu dois prêmios BAFTA, por melhor figurino e melhor filme, não sendo reconhecido por suas canções. Porém sua produção não foge muito do livro e de sua versão da Disney, com elementos do primeiro e do segundo livro. E diferentemente da versão animada de 1951, nesta foi introduzida a cena da Duquesa e do bebê.
Agora uma produção mais excêntrica da louca história de Carrol: a de 1976. O diretor Bud Townsend conseguiu transformar algo já polêmico e problemático, que é a história original, em algo mais polêmico ainda. Além de ser musical e comédia, o filme teve a marca de filme erótico adulto, o chamado X-Rated, por colocar essa Alice em um País das Maravilhas sexualizado e cheio de intenções explícitas, além da roupa provocante da personagem principal. Várias cenas sugestivas de erotismo acontecem entre os personagens, como entre Alice e o Chapeleiro Maluco. Quando a 20th Century Fox comprou os direitos do filme, três minutos foram cortados e ele ganhou o selo R-Rated, que é mais leve que o X-Rated. Em 2007, foi lançado em DVD, onde esteve em sua plenitude, sem nenhum corte e até com mais cenas explícitas que não existiam na versão de 1976.
Imagem do filme "Alice in Wonderland": An X-Rated
Musical Fantasy (1976)
Alguns filmes não envolviam Alice ou ela não era o foco principal. Como Jabberwock, de 1977, dirigido por Terry Gilliam, que conta a história de um homem da Idade Média que perde seu pai e enfrenta aventuras, das quais uma é enfrentar o monstro Jabberwock, retirado do poema nonsense do livro de Carrol, mas com humor ácido muito parecido com Monty Python. Outra versão foi o desenho russo de 1982, que misturava desenhos animados coloridos com em preto e branco, muito mais estranho visualmente que qualquer outra animação. Há também uma roupagem mais moderna na criação belga-polonesa também de 1982, em que Alice (Alicjia, no original) vive no mundo normal e se apaixona por alguém, que corresponderia ao Coelho na história original. E, por último, a versão grotesca de 1985, Dreamchild, conta a história de uma envelhecida Alice que mora em Nova York mas retorna à Inglaterra para receber um prêmio honorário aos cem anos de Carrol. Do decorrer dos acontecimentos, essa Alice entra em contato com sua infância e também com os seres do País das Maravilhas, os quais estão representados muito mais assustadoramente.
Imagem do filme "Dreamchild" (1985)
E se não bastasse as duas versões de 1982, Maryl Streep também não ficou de fora com uma versão musical em teatro, não fugindo da história original, porém repleta de canções originais, além dos figurinos e cenários bem típicos de teatro. Seis anos depois, o diretor Jan Svankmajer resolveu criar uma verão surreal e muito estranha com recortes de Alice no País das Maravilha & Através do Espelho, com cenas de stop-motion misturadas com ações reais, dando um ar totalmente mais sombrio e triste que qualquer outra versão. E uma década depois, a tão pouco produzida Através do espelho chegou aos cinemas em 1998, estrelando Kate Beckinsale no papel de Alice. A história não foge muito da do livro, com aparição da Rainha Vermelha e da Rainha Branca como deve ser. A atriz é mais velha e atua muito melhor que em muitas versões anteriores com crianças, mas sem amadurecer Alice em excesso e sem tirar os encantos das aventuras pelo País das Maravilhas.
Imagem do filme "Through the Looking Glass" (Através do Espelho)1998
Finalmente, a versão de Tim Burton em 2010, que seria como uma volta de Alice ao País das Maravilhas muito tempo depois. A nova Alice, interpretada por Mia Wasikowska, agora com dezenove anos, está prestes a ter a mão pedida em casamento quando decide fugir da proposta um tanto falsa e obrigatória. Nessa fuga, segue o coelho de paletó e cai no famoso buraco. Alice in Wonderland de Burton trouxe de volta aos cinemas a tecnologia 3D, há algum tempo esquecida, mas com todos os retoques modernos e de qualidade, que podem ser vistos logo na queda pelo buraco. A crítica ficou dividida entre um filme bom e um filme regular, mas foi grande a aceitação do público, apesar das incoerências da história quando comparada ao livro. Houve misturas dos dois livros, pois teve a Rainha Vermelha, original da continuação do livro, falando o bordão “Cortem-lhes a cabeça”, que na verdade era da Rainha de Copas, do primeiro livro. Além da aparição da Rainha Branca (Anne Hathaway), com sua etérea e livre atuação, e do monstro profético Jabberwock ao final do filme. O filme é o que possui os melhores efeitos especiais e um dos elencos mais bem investidos. E agora, em 2016, Alice volta em uma história adaptada totalmente original, o Alice Através do Espelho. Abaixo a versão de 2010 de Tim Burton:
O livro de Carroll não foi inspiração apenas para o cinema. Desenhos animados, séries para a televisão e até mesmo adaptações com fundo educativo ou de crítica foram inspirados nas histórias vividas por Alice. Uma curiosidade dos anos 30 foi uma febre de produzir Alice, que atacou os dois lados do Atlântico. Foram desenhos que passavam na TV colocados no mundo do País das Maravilhas, peças de teatro da Broadway, músicas e performances. Em 1934, foi lançado o desenho animado Betty in Blunderland, onde a personagem Betty Boop, garota independente e provocadora, aparece acompanhando os personagens do País das Maravilhas. O coelho branco se materializa a partir de um quebra-cabeça e leva Betty Boop através do espelho para o País das Maravilhas. Em 1936 temos Através do Espelho ou Thru de Mirror, uma animação, onde Mickey Mouse revive as aventuras do segundo livro de Carroll, Alice Através do Espelho e o que Ela Encontrou por Lá. Mickey está lendo o livro sobre a história de Alice no País das Maravilhas e acaba adormecendo, em sonho, é transportado ao outro lado do espelho, onde vive várias aventuras. Abaixo as animações: Betty in Blunderland (1934) e Através do Espelho / Thru de Mirror (1936).
The New Alice in Wonderland ou What’s a Nice Girl Like You Doing in a Place Like This? (1966) foi um telefilme animado produzido por Hanna Barbera. Enquanto Alice lê o livro distraidamente para matar o tédio, seu cachorrinho Fluff magicamente some pela TV da sala. Preocupada com Fluff, Alice o persegue pela televisão, o que leva os dois a uma grande aventura no País das Maravilhas. Abaixo a animação:
Entre 1983 e 1984, Alice foi até inspiração para anime japonês, com Fushigi no Kuni no Alice. Uma co-produção entre Japão e Áustria exibida pela primeira vez em Portugal em 1987, o incontornável "Brinca Brincando". A série animada apresentava algumas variações criativas em relação aos livros, nomeadamente o fato de Alice entrar e sair do País das Maravilhas em cada episódio, o que faz do lugar mais um fruto da imaginação de Alice do que um universo paralelo dos livros e do filme da Disney. Abaixo o anime Fushigi no Kuni no Alice:
Para a televisão, houve entre 1992 e 1995 a série Adventures in Wonderland. Baseada na clássica história infantil, a série musical de televisão acompanha Alice (Elisabeth Harnois), uma menina que descobre uma passagem secreta para o Mundo das Maravilhas através de seu espelho. Além de seus dramas cotidianos, ela ajuda seus doidos amigos desse mágico lugar a superar diversas crises. Abaixo um episódio da série:
Em 2009, a minissérie de televisão Alice, estrelada por Caterina Scorsone, conta a história da jovem Alice, que segue seu namorado até a cidade subterrânea País das Maravilhas, governada pela Rainha de Copas, que não se agrada com a chegada da jovem. Alice recebe ajuda do Chapeleiro, mas este não pretende ajudá-la a resgatar Jack que está sequestrado, devido aos sentimentos que ele começou a sentir por ela.
Alice também foi inspiração para a série americana de TV Once Upon a Time, estreada em 2011 e ainda em exibição (novas temporadas). Sua história apresenta como personagens outros personagens dos filmes dos contos de fadas, que são transportados ao mundo real, porém sem memória. Alice ganhou sua própria série baseada neste seriado, de nome Once Upon a Time in Wonderland. Nela, Alice conta a história de uma terra muito distante que existe do outro lado da toca do coelho, onde há vários seres fantásticos. Abaixo um um trailer da série:
Também houve algumas abordagens inspiradas em Alice cuja temática era de cunho mais educacional ou de crítica. O primeiro deles foi Curious Alice, de 1972. Feito para o National Institute of Mental Health (EUA), é parte de um curso sobre drogas para crianças da escola elementar. Uma Alice viva faz uma viagem em meio a personagens de desenho animado. A Lagarta fuma maconha, o Chapeleiro Louco toma LSD, o Caxinguelê usa barbitúricos e a Lebre de Março toma anfetaminas. O Coelho Branco é um líder que já entrou nas drogas. O Gato de Cheshire é a consciência de Alice. Abaixo um trecho do filme:
Em 1978, Alice in Wonderland: a Lesson in Appreciating Differences, educativo produzido pelo Walt Disney Productions, com personagens vivos no início e no fim com a exibição da sequência da flor do filme da Disney (1951) e uma discussão sobre o quanto as flores trataram Alice mal simplesmente porque ela era diferente.
O filme Tideland (no Brasil, Contraponto), de 2005. Conta a história de Jeliza-Rose, que vive em um mundo de fantasia, com esquilos que falam, vaga-lumes que parecem fadas e cabeças de bonecas separadas de seus corpos são suas melhores amigas. Quando a mãe morre, ela e o pai drogado embarcam em uma estranha jornada rumo à fazenda abandonada da família. Submersa em sua solidão, a menina se afunda cada vez mais em sua imaginação para evitar o sofrimento da realidade. O filme faz relações diretas ao livro Alice no País das Maravilhas. O filme mostra que os sonhos e fantasias podem se transformar em escapismo e negação da realidade. Jeliza-Rose ao viver em seu mundo escapista, de fantasia, busca negar a realidade em que seus pais são viciados em drogas negligentes. Abaixo o trailer do filme:
E em 2008 foi lançado Phoebe in Wonderland (no Brasil, A Menina no País das Maravilhas), que conta a história de Phoebe, uma menina rejeitada pelos colegas de classe e que tem um comportamento difícil, preocupando seus pais, que não a compreendem. Phoebe prefere se esconder em suas fantasias. Aos poucos, ela passa a confundir a realidade com seus sonhos. A professora de teatro da escola de Phoebe convida a turma para participar de uma produção teatral, Alice no País das Maravilhas, que a princípio ela rejeita. Depois, vê a oportunidade de interpretar Alice. O filme busca discutir a questão do comportamento dos pais quando lidam com algo diferente, quando um filho se apresenta diferente do outro, bem como a diferença entre adultos e crianças, pais e filhos, professores e alunos. Abaixo o trailer do filme:
Referências Bibliográficas
CARROLL, Lewis. Alice: Aventuras de Alice no País das Maravilhas; & Através do Espelho. Ilustrações originais de John Tenniel; introdução e notas Martin Gardner; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. – 2. Ed. Com. e il. – Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Links para as versões de Alice apresentadas acima (Filmes, desenhos animados e séries):
O livro Alice no País das Maravilhas foi publicado em 1865, no auge da era vitoriana na Inglaterra. Antes de explicar o que foi o período vitoriano e como este influenciou na elaboração do livro, iremos mostrar um pouco do que se passava na Inglaterra e no mundo naquela época.
Centro urbano na Inglaterra - período da Revolução Industrial
Entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, houve a Revolução Industrial que mudou todo o sistema político-econômico dos países. Antes, tudo era centrado no campo com a produção artesanal dos produtos. Mas, com a mecanização da produção, houve um aumento da produtividade, um foco nas áreas urbanas (antes pouco povoadas). Já na metade do século, a maioria da população inglesa, bem como a europeia em geral, estava situada na cidade e não mais no campo.
Além da Revolução Industrial, houve também uma grande mudança no poderio mundial. Santos cita em seus estudos que o império francês que dominava o mundo até então começou a cair e o império britânico tomou o seu lugar de potência mundial. Foi a partir daí que este império começou a crescer. O rei começou a incentivar o comércio e o desenvolvimento no campo das ciências exatas (matemática, química, física, elétrica). Portanto, podemos dizer que o autor de Alice nos País das Maravilhas viu mudanças significativas ocorrerem em seu país e em toda a Europa.
Fotografia da Rainha Vitória
Anos antes de Carrol publicar o livro em questão, a Rainha Vitória, da casa de Hanôver, assumiu o trono britânico, iniciando assim a Era Vitoriana. Silva comenta que foi em seu reinado que o território britânico se expandiu consideravelmente. Porém, o seu governo foi marcado por modelo de valores e moral rigorosos. Além dela, havia a figura do primeiro-ministro, este sim era chefe de governo. Era ele quem tomava todas as decisões político-econômicas do reinado, enquanto a Rainha Vitória tinha pouca influência sob o governo.
Voltando à questão da moral rigorosa implantada em seu governo, podemos citar diversas mudanças e leis implantadas pela monarca. É claro que há diversos outros pontos importantíssimos para ressaltar sobre o reinado de Vitória, porém o foco aqui é tentar capturar quais características históricas foram abordadas ou influenciaram o autor de Alice no País das Maravilhas. Essas influências estão estritamente ligadas ao moralismo e disciplina rígida implantadas na época.
De acordo com o que Barbosa (2007) e Silva mostram em seus estudos, a sociedade da era vitoriana esbanjava moralismos, com preconceitos rígidos e proibições severas. Tudo o que imaginamos como absurdo nos dias de hoje era praticado naquele período como algo normal. Podemos citar a submissão da mulher, ou seja, ela deveria obedecer ao homem e restringir-se aos cuidados da casa e dos filhos. Além disso, ela não podia ir contra nenhuma decisão tomada pelo homem ou pelo governo, senão era considerada como alguém que está doente, com distúrbios de ansiedade. Não só a mulher fora afetada por esse moralismo. Os homossexuais também eram considerados seres imorais. Toda a população britânica deveria prezar pelo trabalho, pelos deveres da fé e defender a moral. Assim sendo, a preguiça e o vício eram vinculados à pobreza e o sexo era algo sujo, animalesco. Este deveria ser tratado entre os casais dentro de suas casas.
Falando neste assunto, é interessante observar a individualização do homem. No campo, as pessoas tinham contato direto com as demais. Já nas cidades, com a concepção de casa, os indivíduos passavam grande parte do tempo dentro de suas residências e não interagiam com os demais.
Mas o que tudo isso tem a ver com Alice no País das Maravilhas? Tudo. Vários desses aspectos foram abordados pelo autor de forma sutil, para que não fossem facilmente percebidos. Iremos abordar alguns desses aspectos históricos presentes no texto de uma forma simbólica, evidenciando a importância do contexto histórico nesse obra.
Charles Dodgson, Pseudônimo Lewis Carroll autor de Alice no País das Maravilhas, fez algumas referências a aspectos da era vitoriana que ele julgava equivocados e para isso utilizou a forma da ironia. Os dois grandes motes observados por ele foram a insatisfação com a burocracia acadêmica e os preconceitos com a criança. (VIEIRA 2010). Naquela época, os aristocratas queriam fazer uma reforma na educação. Carroll participava dessas conversas sobre a mudança, porém não concordava com o que era debatido ali. Além disso, as crianças não eram vistas como tais naquele período, muitas inclusive trabalhavam nas indústrias.
Com base nisso e nos estudos de Vieira (2010), a primeira referência histórica que podemos abordar no livro é com relação a “Corrida do Seca-Seca”. A brincadeira consistia em uma corrida em que os animais sairiam desordenadamente cada uma para um lado, e era muito difícil determinar o vencedor. Aqui, Carroll faz uma alusão à desordem e à falta de produtividade nas reuniões políticas de seu país. As discussões ocorridas nas Câmaras Inglesas também eram feitas com um pequeno grupo de interesse, porém raramente chegavam a um consenso sobre algo. Eram sempre muito confusas. Na língua original, a corrida intitula-se “Caucus-Race”. O termo “caucus”, faz referência às reuniões de líderes de uma facção para determinar um direcionamento político. Na Inglaterra vitoriana, pequenos grupos de aristocratas se reuniam para tentar decidir, o que iria ocorrer (VIEIRA 2010).
No capítulo sete: “Uma louca festa do chá” Carrol continua a referir-se às reuniões da Câmara dos Comuns das quais participava. Referindo-se ao título em inglês “A Mad Tea Party”, party pode significar festa ou um grupo reunido com um propósito. Esta segunda alusão remete-nos às reuniões dos tribunais, e vemos Alice confrontando os argumentos esquisitos da lebre e do Chapeleiro Maluco.
Além disso, segundo Vieira (2010), se compararmos a ilustração do Chapeleiro Maluco de John Tenniel com a figura do primeiro-ministro britânico Gladstone, podemos perceber certas semelhanças. Era exatamente com as ideias deste senhor que Carrol não concordava. Essa personagem alucinada pode fazer referência às ideias absurdas de Gladstone.
O Chapeleiro Maluco - Ilustração
de John Tenniel
Fotografia de Gladstone
Há outra alusão à desordem na política inglesa no capítulo doze, durante o julgamento para saber quem roubou as tortas da rainha. O motivo desse julgamento é inútil, os juízes pararam seus afazeres para julgar esse assunto. Além disso, as leis desse tribunal são absurdas e discriminatórias. Durante o tribunal, Alice vai ficando cada vez maior. Nesse trecho o autor parece estar fazendo uma crítica aos tribunais e ás leis inglesas, mas, ao mesmo tempo parece querer chamar a atenção para a forma como as crianças eram vistas e tratadas na época (VIEIRA, 2010). Como já foi dito, os menores trabalhavam igual aos adultos, sem nenhum direito especial. Mas o objetivo aqui não é esgotar as possibilidades de comparações entre o momento em que Carroll escreveu e partes de sua obra, mas mostrar que na obra em questão o autor levanta várias questões relevantes de sua época, daí a importância do conhecimento do contexto histórico durante o qual ele escreveu.
Referências Bibliográficas
BARBOSA, Renata Cerqueira. A Inglaterra Vitoriana e os usos do passado: Literatura e Influências. 2007. Disponível em: http://www.assis.unesp.br/Home/Eventos/SemanadeHistoria/renata.PDF. Acesso em: 03 mai. 2016.
BRITO, Bruna Perrela. Alice no País das Maravilhas: Uma Crítica à Inglaterra Vitoriana. Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCL/projeto_todasasletras/inicie/BrunaBrito.pdf. Acesso em: 04 mai. 2016.
SANTOS, João Pedro Ricaldes de. A Europa no Século XIX. Disponível em: http://humanarte.net/europeus.pdf. Acesso em: 02 mai. 2016.
SILVA, Débora. A Era Vitoriana. Disponível em: http://www.estudopratico.com.br/era-vitoriana/. Acesso em: 03 mai. 2016.
SOUZA, Caroline Garcia de. Lewis Carroll e a Educação Vitoriana em Alice no País das Maravilhas. Disponível em: http://www.wwlivros.com.br/IIjornadaestlit/artigos/estrangeira/SOUZACaroline.pdf. Acesso em: 04 mai. 2016.
É impossível ler As Aventuras de Alice no País das Maravilhas sem que a Loucura – bem como tudo o que se relaciona a ela – chame a atenção de um leitor um pouco mais maduro. A loucura, bem como o surreal e o non-sense não só permeiam a obra, como também a movimenta.
Segundo a psicologia, todo tipo de pensamento que uma sociedade considera anormal é chamado de loucura. Quando um indivíduo se distancia das suas formas naturais de agir ou pensar, ele possui algum tipo de distúrbio ou alteração mental. Tudo aquilo que está fora da normatividade estabelecida é condenado pela sociedade, pois foge ao controle da razão.
Porém, muitas vezes a verdade está mais no delírio do que no bom senso dos homens. E é possível estabelecer limites saudáveis entre loucura e sanidade, um desses limites possíveis é a desrazão. A loucura por si só não é interessante, mas a desrazão seria um estágio de insanidade que permite ao indivíduo, mergulhado em seu inconsciente, transitar entre a razão e aquilo que foge a ela como o irreal, o absurdo e o non-sense, um espaço em que as relações lógicas são outras. O enigma sobre a"semelhança entre um corvo e uma escrivaninha?” (CARROLL, 2010, p. 81) ilustra muito bem o non-sense que movimenta a obra. No país das Maravilhas o direito ao pensamento, à razão, é suspenso: um trecho da conversa de Alice com a Duqueza mostra isso: “tenho o direito de pensar” diz Alice. “tanto direito quanto os porcos têm de voar” diz a duquesa. (CARROLL, 2013, p. 73).
Levando em consideração o conceito de desrazão é possível perceber que quando Alice entra no País das Maravilhas está mergulhada em todo o potencial de seu inconsciente. Ao ser atacada pelas cartas do baralho, a menina desperta novamente para a realidade. Contudo, a loucura está presente em várias partes do livro e é sugerida explicitamente com frequência, um exemplo disso pode ser visto no encontro de Alice com o Gato Cheshire:
Ilustração de John Tenniel
“‘Naquela direção’, explicou o Gato, acenando com a pata direita, ‘vive um Chapeleiro; e naquela direção’ acenando com a outra pata, ‘vive uma Lebre de Março. Visite qual deles quiser: os dois são loucos.’
‘Mas não quero me meter com gente louca’, Alice observou.
‘Oh! É inevitável’, disse o Gato; ‘somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca’.
‘Como sabe que sou louca?’ perguntou Alice.
‘Só pode ser’, respondeu o Gato, ‘ou não teria vindo parar aqui’.” (CARROLL, 2010, p. 77).
Juliana M. N. Araújo diz que “o indivíduo só pode ser considerado louco em relação a algo ou alguém, pois é muito difícil definir a loucura por si só” (ARAÚJO, 2014). A sociedade do país das maravilhas não reconhece a loucura como uma patologia, pois todos são loucos de alguma forma, logo a loucura não é real. Nesse caso, Alice seria tão normal quanto os demais seres do mundo subterrâneo, mas louca diante da sociedade vitoriana na qual que vivia. Há aqui uma relativização da loucura.
A Natureza Insana da Criança
O psicanalista Adam Phillips defende que a fase da infância seja um período de “loucura original”, a sanidade só é alcançada a partir do desenvolvimento. “Nascemos literalmente insanos”, alega ele.
A criança tem uma natureza apaixonada, a menina Alice é autêntica e autoconfiante, o que lhe permite responder a uma variedade de situações com criatividade, autenticidade e espontaneidade . A loucura é uma resposta autêntica criativa, que busca a inovação, sem o medo das incertezas futuras. (ARAÚJO, 2014). Vejamos um exemplo disso: “‘Quem se importa com vocês?’, disse Alice (a essa altura já tinha chegado no seu tamanho normal). ‘Não passam de um baralho!’.” (CARROLL, 2010, p. 145). Segundo Bettelheim
"Uma criança defrontada com problemas e situações cotidianas que lhe causam perplexidade é estimulada, no seu aprendizado a compreender o ‘como’ e o ‘por que’ de tais situações, e a buscar soluções. Mas como sua racionalidade até então exerce pouco controle sobre o inconsciente, a imaginação escapa, junto com ele, sob a pressão de suas emoções e conflitos não resolvidos. A habilidade da criança em raciocinar, que apenas surgiu, logo é dominada pelas ansiedades, esperanças, medos, desejos, amores e ódios – que se entrelaçam com qualquer coisa que ela comece a pensar" (BETTELHEIM, 1980, p. 78)
Sob a óptica da psicologia, Alice, aos 11 anos, ainda é uma criança e age como tal, porém seu corpo começa a sofrer algumas transformações com a chegada da puberdade. No mundo subterrâneo, ela sofre diversas alterações de tamanho, ela muda de tamanho 12 vezes no livro (e este possui 12 capítulos), ora minúscula, ora gigantesca, até por fim chegar novamente ao seu tamanho natural – que ela mesma quase já não se recordava qual seria. Tais mudanças faziam com que Alice se questionasse sobre quem realmente era. Em sua conversa com a Lagarta esta lhe pergunta várias vezes "Quem é você?" e ela não sabe responder:
Trecho da produção da Disney no qual ela conversa com a lagarta
“‘Quem é você?’ perguntou a Lagarta. Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio encabulada: ‘Eu... eu mal sei, Sir, neste exato momento... pelo menos eu sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então.’” (CARROLL, 2010, p. 55).
Essas mudanças corporais exageradas podem ser entendidas como uma metáfora desse ciclo que se inicia em sua vida e como o seu inconsciente interpreta e sente essa situação. Assim como ela, todo o ambiente e todas as personagens ficam distorcidos e surreais, quase psicodélicos, como é o caso do Grifo e da Tartaruga Falsa. Esta segunda personagem já fora uma tartaruga verdadeira, porém, por um motivo desconhecido, tornou-se falsa e vive agora triste. É praticamente um espelho das sensações e sentimentos que Alice vive no momento.
Queda na Toca do Coelho: Submersão no Mundo dos Sonhos
Ao cair no buraco da toca do coelho, supõe-se que Alice esteja dormindo, pois está em um mundo desorganizado e sem apoios, no qual a sensação de queda interminável garante o absurdo do momento. Entrar no mundo subterrâneo significa acessar o mais que há de mais profundo no seu inconsciente e a queda profunda sugere o quanto esses conteúdos são difíceis de serem alcançados.
Trecho da produção realizada pela Disney no qual ela está
numa queda livre após cair no buraco do coelho
O sonho é, portanto, uma parte desconhecida do sujeito, “é no inconsciente que mergulhamos todas as noites” – ou toda vez que dormimos profundamente, explica o psicanalista Jung. Sendo assim, o país das maravilhas seria o mundo dos sonhos de Alice, o mundo do seu inconsciente.
O mundo subterrâneo não é reconhecido por Alice, mas também não lhe causa tanto estranhamento. Após o momento da novidade e da peculiaridade de cada fato, a menina responde a eles com certa naturalidade e muita desenvoltura. Para Araújo
“A loucura surge como um saber, difícil e estranho, mas que é inacessível ao homem são. A loucura abre-se a um mundo de significações, que faz surgir figuras com sentidos que só se deixa apreender sob o insano. É uma sabedoria simbólica que provem de uma sobrecarga de sentidos e de significações que só o sonho e o insensato podem alcançar.” (ARAÚJO, 2014).
Segundo Araújo “o caminho trilhado por Alice pode, então, ser comparado a um processo de crescimento psicológico” (ARAÚJO, 2014). O crescimento psicológico de Alice se dá a partir do desenvolvimento das relações com cada personagem e de seu entendimento individual. Para Jung, cada personagem representa uma sombra de Alice em diversos momentos de sua vida, e – sendo o inconsciente atemporal – eles podem aparecer de maneira concomitante durante o mesmo sonho.
O Chapeleiro Maluco - Ilustração
de John Tenniel
“Alice estivera olhando por cima do ombro dela com certa curiosidade. ‘Que relógio
engraçado!’ observou. ‘Marca o dia do mês, e não marca hora!’
‘Por que deveria?’ resmungou o Chapeleiro. ‘Por acaso o seu relógio marca o ano?’
‘Claro que não!’, Alice respondeu mais que depressa, ‘mas é porque continua sendo o mesmo ano por muito tempo seguido.’
‘O que é exatamente o caso do meu’, disse o Chapeleiro.” (CARROLL, 2010, p. 83.)
O país das maravilhas é um mundo desconhecido e enigmático, uma zona fantástica habitada por criaturas peculiares e antropomórficas. Esse mundo apresenta uma lógica do absurdo típica dos sonhos que faz com que a obra seja incorporada no gênero do non-sense. Durante seu julgamento, no último capítulo, Alice vai crescendo, e ao mesmo tempo volta à razão, acordando, de volta à realidade.
A Busca Inconsciente Pelo Autoconhecimento
Como vimos Alice se questiona sobre quem ela é e durante a sua queda pela toca do Coelho, divaga bastante, há um fluxo de consciência pelo qual ela passa, em busca de em si mesma, de um autoconhecimento.
Como já foi dito, o crescimento psicológico de Alice pode ser visto através das relações da menina com cada personagem, mas é também percebido a cada ação dela mediante as diferentes situações e a cada escolha que ela faz para enfrentar as diferentes adversidades em seu caminho. Logo no início da obra, a garotinha se deixa levar mais pelos acontecimentos, contudo, ao final da história, decide tomar ela mesma as rédeas das situações, impondo suas vontades e se afirmando como uma pessoa importante, e não simplesmente como alguém em quem a Rainha de Copas possa mandar e desmandar como bem entender.
Ao se consolidar como mandante da situação, Alice evidencia o seu crescimento psicológico e inicia sua jornada rumo ao autoconhecimento, mesmo sem se dar conta disso. Tudo acontece de forma muito subjetiva, mas esse movimento natural da mente humana tem como objetivo a busca pelo desenvolvimento pessoal e nos leva a pensar sobre o que é e como se dá a descoberta de si mesmo. Uma coisa depende da outra. Num trecho do livro de Carroll Alice afirma:
“‘Eu poderia lhes contar minhas aventuras...começando por essa manhã’, disse Alice um pouco tímida; ‘mas não adianta voltar a ontem, porque eu era uma pessoa diferente’.” (CARROLL, 2010, p. 121).
Obra de Arte e de Psicologia
Loucura e sanidade são extensões uma da outra. Para Phillips
“A loucura, em sua melhor forma, é uma jornada rumo à verdadeira sanidade, rumo a autenticidade de nossa verdadeira natureza, através da loucura estamos em contato com o que há de melhor em nós. A cultura corrompe nossa verdadeira sanidade.” (PHILLIPS, 2008, p. 25).
Com personagens loucos ou não, num mundo aparentemente sem sentido, Carrol criou uma obra que se tornou um clássico da literatura, não só juvenil – por oferecer um mundo fantástico com o qual as crianças e adolescentes se identificam – mas também adulto – por permitir diversas interpretações dessa obra - que, como diz Ederli Fortunato “parte do mundo real para um universo de regras próprias, onde o absurdo, o mágico e o ilimitado coexistem” (FORTUNATO, 2015).
A obra contribuiu para o surgimento de algumas linhas de estudo, inclusive na filosofia, tais como o existencialismo e o uso da lógica e da matemática aplicada em obras literárias. É nessa importante, densa e complexa produção que psiquiatria e arte se confundem a tal ponto que não é possível definir onde uma se termina e a outra se inicia.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Tradução. Ariene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. & Através do Espelho e o Que Alice Encontrou Por Lá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. & Através do Espelho. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2ª ed., 2013.
Como vimos na primeira postagem Quem foi Lewis Carroll? Charles Ludwidge Dodgson se formou em matemática e lógica e se destacou a tal ponto de começar a lecionar com apenas 23 anos. Ele chegou inclusive a escrever livros sobre isso. Sabemos que essa área na qual nosso escritor ingressa e demonstra muita competência é totalmente pautada na razão, no racionalismo, mas quando ele escreve seus livros de histórias infantis que incluem sua obra prima Aventuras de Alice no País das Maravilhas ele assume o pseudônimo Lewis Carroll que parece se contrapor a esse racionalismo, se voltando ao non-sense que não só permeia, mas caracteriza a obra em questão.
Segundo a pesquisadora Sandra Vasconcelos, no livro Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Carroll coloca em confronto o mundo da lógica e o mundo do non-sense, o que segundo ela, está diretamente ligado à própria figura de Dodgson que incluía ao mesmo tempo a seriedade e a circunspeção do professor de lógica e matemática de uma universidade inglesa renomada e de um homem que tinha uma ligação com o mundo da igreja anglicana, e, ao mesmo tempo, tinha uma personalidade literária, na verdade, desde criança ele já vinha explorando o mundo no non-sense e da literatura, mas segundo a mesma pesquisadora essa personalidade literária dele se configura realmente quando, no dia 4 de julho de 1862, ele conta a história de Alice para as irmãs Liddel, aqui ele se transforma em Lewis Carroll um homem que andava com a cabeça cheia de histórias e enigmas voltados para o mundo da fantasia no qual há uma outra lógica que se contrapõe ao mundo racional, a esse mundo cheio de regras e hierarquias, a realidade onde ele vivia.
Com isso falemos um pouco mais sobre o non-sense, uma linguagem que surgiu no século XIX e que se funda na ideia de brincadeira com os sentidos das palavras, exercendo obediência paradigmática e gramatical, o que torna ilógico o funcionamento interno da história. De difícil definição, o conceito dessa linguagem provoca diversas opiniões. Podemos dizer que a palavra em si mesma surgiu da expressão em inglês no+sense, que significa literalmente “não-sentido”. Ou seja, non-sense suporia um esvaziamento de sentido, uma negação de sentido, ou ainda uma inexistência de sentido. A partir do ponto de vista segundo o qual o sem-sentido aparece na história, Myriam Ávila afirma que a especificidade do non-sense “reside em algo que deixa o leitor suspenso entre o riso e a perplexidade, entre a estranheza e a identificação, como se aquilo ao mesmo tempo lhe dissesse respeito e não dissesse respeito a coisa alguma” (ÁVILA, 1996, p. 203), e que “é precisamente a ausência de um ponto de repouso, a instabilidade e a instauração da dúvida que constituem o núcleo do nonsense” (ÁVILA, 1996, p. 86).
Levando em consideração o nonsense, Cecília Meirelles fala sobre um tipo especial de leitores: os leitores híbridos, crianças-adultos e adultos-crianças. Estes leitores, contrariam a suposição segundo a qual as crianças não possuem capacidade poética de interpretar leituras que fogem da realidade. Esses leitores são atraídos pela leitura de Carroll, que se desvia, em Alice no País das Maravilhas, da ligação com o sentido (MEIRELES, 1984, p. 113). Davi Arrigucci parece concordar, e diz que “não parece boa política, quando se quer valorizar as Alices de Lewis Carroll, encará-las como leitura para adultos. Também não seria conveniente inverter o equívoco e vê-las como leitura para crianças. Esticar e encolher são possibilidades nada desprezíveis de Alice. Grandes e pequenos compreenderão seu significado em dimensões diversas” (ARRIGUCCI apud MEIRELES, 1984, p. 141).
Ilustração de John Tennie
Na história, o mundo de Alice é guiado por regras que ela não conhece, que não são compatíveis com o que ela conhece como realidade. A história narra em seu início que Alice estava muito cansada, e que não havia nada a fazer. O livro da irmã sentada ao seu lado não interessava, pois “de que serve um livro sem figuras e sem diálogos?”, indaga. Neste momento, passa por ela um coelho branco de olhos cor-de-rosa vestindo um colete, olhando para um relógio e reclamando de estar muito atrasado. Alice decide seguir este coelho estranho, e acaba numa toca que é um grande buraco. Se instaura o sem-sentido. E segue desta forma, como observa Natália Thomaz:
"Durante a história, ela fica tão grande que não cabe em uma casa, tão pequena que teme sumir como a chama de uma vela, duvida da própria identidade e tem dificuldade para se comunicar com as criaturas que encontra. As situações inusitadas vividas pela menina provocam sensações conflitantes, o leitor fica aflito e se sente deslocado ao mesmo tempo em que acha graça no que acontece. A escrita nonsense provoca dicotomia, ao desconstruir a lógica a qual o leitor está acostumado por meio de jogos com a linguagem e com significados. Ela cativa pelo sarcasmo misturado ao cômico, que faz com que disparates soem de maneira graciosa. Os jogos de palavras remetem a ingenuidade infantil e aos conteúdos de sonhos; uma brincadeira que leva o leitor a sorrir pelo canto da boca e sentir-se desconfortável ao mesmo tempo. Provavelmente por essa linguagem lúdica, o nonsense atrai tanto crianças quando adultos. Em uma época em que os livros infantis seguiam uma tendência doutrinária, o livro de Lewis Carroll rompe, desafia." (THOMAZ, 2012, p. 12)
Ilustração de John Tenniel numa versão do livro traduzida para o português
A narrativa “sem pé nem cabeça” leva o leitor a um exercício de imaginação, de modo que, no contexto histórico da Era Vitoriana, o autor fez uma recolha cultural e colocou a lógica do então cotidiano em cheque. Alice é posta num tipo de labirinto: se perde no discurso sem conseguir acompanhar os pensamentos e as lógicas das personagens do País das Maravilhas.
O nonsense também se modifica a partir das ilustrações (ou de sua ausência)trazidas pelas diversas edições do livro; à medida que estas [as ilustrações] sugerem ao leitor maior ou menor sensação de desconforto, que é típica do nonsense. Também se trata de uma quebra de limites, um olhar além/através do esperado, do normal. É um jogo de criar expectativas apenas para subvertê-las, uma descostura fio a fio que, aliada ao paradoxo, chega ao extraordinário.
Carroll constrói charadas, jogos de lógica, “cria brincadeiras” ao longo de sua narrativa. Sua obra, porém, não é de todo sem sentido, uma vez que é construída com base em referências literárias, matemáticas e científicas. Tendo em conta que o autor escreveu em um período em que a literatura na Inglaterra possuía fins educativos, uma literatura pedagógica, com o nonsense presente em sua obra ele consegue libertar as crianças desse regime dos bons costumes, questionando os saberes e colocando o outro como a ordem do sem sentido. (RADAELLI, 2012).
Ao tomar como base as referências presentes na obra, o nonsense na verdade vai ganhando sentido, sentido que talvez apenas determinados públicos pudessem compreender (como por exemplo, britânicos, devido a infinidade de versos e trocadilhos de poemas ingleses, que Carroll coloca em sua obra )ao ler a obra em determinado contexto histórico (a Inglaterra Vitoriana). Segundo Leite
“[...] parecendo, a uma visão superficial, fantasias arbitrárias, são, na verdade, referenciados a uma realidade vivida ou pensada pelo autor, desde o plano concreto da realidade biográfica, histórica, linguística etc., até o plano mais abstrato das discussões científicas e das especulações lógico-semânticas” (LEITE, 1980, p. 16 apud RADAELLI, 2012, p. 53).
Segundo Radaelli
“ Por intermédio de sua personagem, Alice, Lewis Carroll questiona o saber universalizante e nos mostra [...] a loucura da identificação, a equivocidade da linguagem e a falta de sentido do real, [...] , o nonsense torna-se a condição para que a criação aconteça, pois ele não comporta o efeito de censura, mas libera o desejo das armarras imposta pela lógica do imaginário e do simbólico.” (RADAELLI, 2012, p. 65).
Com sua obra “Lewis Carroll nos ensina a não recuar diante do real” (RADAELLI, 2012, p.162)
Referências Bibliográficas
ÁVILA, Myriam. Rima e Solução: A Poesia Nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear. São Paulo: Annablume, 1996.
MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
RADAELLI, Juliana, O nonsense no País das Maravilhas: o que Alice ensina à educação. Universidade de São Paulo - São Paulo, 2012.
THOMAZ, Nathália. Alice em Metamorfose. Universidade de São Paulo - São Paulo, 2012.
Segundo Cohen, em 1866 Carroll estava impressionado com o sucesso da sua obra e começou aAlice’s Adventures in Wonderland (As Aventuras de Alice no País das Maravilhas). Em 1867 a escrita de Through the Looking Glass (Através do Espelho) estava a todo vapor, no entanto, ele precisava encontrar um ilustrador, e fez a proposta a Tenniel, que após alguma hesitação devido ao transtorno da primeira publicação de Alice in Wonderland, acabou aceitando fazer o trabalho quando tivesse disponibilidade. Em 1871, o livro estava terminado, mas os desenhos não, em agosto daquele ano, Tenniel havia enviado apenas 27 desenhos para Carroll. Tenniel terminou o trabalho e Macmillan começou a demonstrar interesse de publicar o livro no Natal, o que gerou preocupação em Carroll, que não queria que o “fiasco considerar uma continuação para artístico” da primeira publicação de Alice in Wonderland se repetisse, no entanto, tudo correu bem e o lançamento da sequência foi um verdadeiro sucesso. (COHEN, 1998).
Ilustração de Tenniel para “Through the Looking
Glass and What Alice Found There”, na ilustração,
Alice luta com o monstro Jabberwocky (Jaguadarte).
Ilustração de Tenniel para “Through the Looking
Glass and What Alice Found There”
White Knight (o cavaleiro branco)
Referências Bibliográficas
COHEN, Morton N. Lewis Carroll; uma biografia. Tradução de Raffaella de Filippis. Rio de Janeiro: Record, 1998
Segundo Ana Maria Machado um passeio com Alice Liddell e suas duas irmãs foi o que inspirou Lewis Carroll para escrever Alice no País das Maravilhas e, depois Alice Através do Espelho (MACHADO, 2003, p. 132).
De acordo com o texto The Afterlife of Alice In Wonderland Exhibit: Early Editions of Alice's Adventures in Wonderland, esse passeio ocorreu em 4 de julho de 1862 e, nessa ocasião Lewis Carroll, contou às três jovens irmãs Liddel a história de Alice, uma garotinha que caiu em uma toca de coelho e chegou a um lugar onde nada fazia muito sentido. As garotas ficaram encantadas com a história e Alice pediu que Carroll a escrevesse para ela, o que ele fez nos meses seguintes. O manuscrito, ilustrado com desenhos do próprio Carroll ficou pronto no começo de 1863.
Capa do Manuscrito com ilustrações
do próprio Lewis Carroll
Primeiras páginas do manuscrito
Clique no link abaixo e veja o manuscrito completo: Manuscrito Completo
Capa da primeira versão impressa
com a qual Carroll presenteou Alice
Carroll começou a procurar um editor e um ilustrador. Em abril de 1864, John Tenniel concordou em ilustrar o livro. A Gráfica Clarendon da Universidade de Oxford concordou em imprimir a primeira edição com a Companhia Macmillan como editora.O próprio Carroll arcou com os custos da impressão. Em 30 de junho de 1865, a Gráfica Clarendon enviou a Carroll 2000 séries de folha não dobrada, que Carroll enviou a Macmillan, pedindo 50 cópias encadernadas o mais rápido possível para presentear algumas pessoas, além de uma cópia em pergaminho branco para Alice. Ele enviou essa cópia para a menina em 4 de julho de 1865 e distribuiu as outras cópias para amigos nos dias seguintes.
Ilustração de John Tenniel na edição de 1866
Em 19 de julho, Carroll recebeu uma carta de Tenniel, na qual ele expressava insatisfação com a qualidade da impressão de suas ilustrações. Após examinar de perto, Carroll concordou que a impressão era de baixa-qualidade e conversou com o editor. Carroll e Macmillan decidiram republicar a edição com uma impressão mais comercial, Richard Clay de Londres redefiniu o estilo e publicou uma segunda edição, que embora pós-datada (1866), foi lançada por Macmillan em dezembro de 1865, na época das vendas de natal. Outra edição de 3000 cópias foi anunciada por Macmillan em agosto de 1866.
Ilustração de John Tenniel
na edição de 1866
Tinha sido decidido que a primeira edição insatisfatória seria vendida como papel de rascunho, mas uma oferta de compra das 2000 cópias originais veio da editora D. Appleton de Nova York, as folhas impressas foram dobradas e amarradas em capas de pano vermelho com uma vinheta dourada estampada na capa frontal. A página de título de Macmillan, com a insignia datada de 1865 foi removida de cada livro e uma nova página de título com a insignia da Appleton, datada de 1866, foi inserida em todo o lote, menos nos poucos livros que Carroll distribuiu e não pegou de volta, os que ele conseguiu pegar de volta, foram enviados para a D. Appleton em Nova York. (The Afterlife of Alice In Wonderland Exhibit: Early Editions of Alice's Adventures in Wonderland. Trad. nossa.)
Em 1886, Carroll conseguiu que seu manuscrito com ilustrações próprias fosse impresso e distribuído com o título Alice’s Adventure Underground (Aventuras de Alice no Subterrâneo). Vinte e cinco anos depois da publicação original de Alice’s Adventure in Wonderland (Aventuras de Alice no País das Maravilhas), Carroll reescreveu seu texto em uma linguagem simples para crianças mais novas, esta adaptação foi publicada pela Companhia Macmillan em 1890 como The Nursery Alice (Alice no jardim de infância), Carroll incluiu doze das ilustrações originais de Tenniel, aumentadas e coloridas, com a ilustração da capa feita por E. Gertrude Thomson, uma amiga de Carroll. (The Afterlife of Alice In Wonderland Exhibit: Early Editions of Alice's Adventures in Wonderland. Trad. nossa.)
Ilustrações de Tenniel em The Nursey Alice
Referências Bibliográficas
COHEN, Morton N. Lewis Carroll; uma biografia. Tradução: Raffaella de Filippis. Rio de Janeiro: Record, 1998.
MACHADO, Ana Maria. Lewis Carroll. Um tímido que fez uma revolução. posfácio in CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Tradução: Ana Maria Machado. São Paulo: Ática, 2003.
The Afterlife of Alice In Wonderland Exhibit: Early Editions of Alice's Adventures in Wonderland disponível em: http://ufdc.ufl.edu/alice/earlyeds